Hosni Mubarak caiu. Mas sua queda pode não representar o fim
do regime autoritário no Egito. Tampouco parece que o país caminha para se
tornar uma democracia num futuro próximo, exigência dos manifestantes do Cairo.
O marechal que assume o poder na transição representa os esforços do Ocidente
em manter a nação sob domínio das Forças Armadas, que abandonaram Mubarak, mas
não o desejo de continuar no poder. O temor mundial atende pelo nome de
Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, ou simplesmente Irmandade Muçulmana, que
durante os protestos vestiu um traje moderado, porém tem em sua história nada
menos que a forja moderna do termo Guerra Santa, a Jihad, inspiração para
gerações de fundamentalistas no mundo árabe.
Das fileiras da Irmandade Muçulmana saiu, para se juntar à
Al Qaeda, Ayman al-Zawahiri, número dois da organização terrorista e braço
direito de Osama bin Laden. Boa parte dos grupos considerados terroristas no
Oriente Médio deriva diretamente da Irmandade ou se inspira em seus manifestos,
como o grupo palestino Hamas e o egípcio Jihad Islâmica. Esse último com um
vasto currículo de ações suicidas, entre elas a que vitimou o então presidente
do Egito, Anwar Sadat, numa espetacular ação durante um desfile militar em
1981. O vice de Sadat, Mohhamad Hosni Mubarak, entre as autoridades presentes à
parada, saiu-se com um ferimento leve e a cadeira de presidente, que ocupara
até ontem. O próprio Mubarak escapou de seis atentados.
Por mais que apoiem as manifestações por democracia pelo
mundo árabe (a amiga Jordânia é a bola da vez), Europa e Estados Unidos têm
verdadeiro pavor de que, com a máscara da defesa da liberdade, as ditaduras
alinhadas ao Ocidente cedam lugar a governos controlados ou influenciados por
radicais islâmicos. O principal temor reside no Egito, que detém nada menos que
a ligação mais curta entre Europa e Ásia, o Canal de Suez, por onde passa quase
toda a frota petroleira que mantém girando as máquinas industriais das
potências atlânticas.
Uma eventual ascensão da Irmandade Islâmica ao poder no
Egito vai certamente incendiar a região. Não por menos Israel pressiona e
participa ativamente das conspirações para que permaneçam no poder as facções
militares pró-EUA. Curioso é considerar, mesmo indiretamente, que os Estados
Unidos tenham alguma responsabilidade não só pelo apoio a uma ditadura amiga,
mas pela radicalização do movimento islâmico no Egito e sua posterior
disseminação pelas nações árabes.
Essa é uma história que remonta aos primeiros anos após a
Segunda Guerra Mundial e é narrada com muitos detalhes pelo jornalista e
professor Lawrence Wright em O Vulto das Torres (Companhia das Letras, 2007),
obra que destrincha as razões que levaram aos atentados do 11 de Setembro às
torres gêmeas de Nova York, ganhadora do Prêmio Pulitzer. Na base da ideologia
radical da Irmandade Muçulmana encontra-se o professor Sayyid Qutb, que emigrou
para os EUA em 1948 após ter decretada sua sentença de morte pelo rei Farouk,
do Egito. No pós guerra, os EUA representavam a esperança de libertação do
mundo árabe do domínio do agonizante Império Britânico. Esperanças que logo
cairiam por terra com o apoio norte-americano à criação e instalação à bala do
Estado de Israel.
Qutb, descreve Wright, quando da sua partida, não se
considerava muito religioso. Era um nacionalista anticomunista, vestia roupas
modernas, gostava de música clássica e do cinema de Hollywood. Qutb cria nos
EUA, nação forjada por imigrantes, uma terra de valores e tolerância, diferente
da Europa racista. Deparou-se, porém, com uma realidade completamente distinta.
Seus anos nos EUA coincidiram com a divulgação do polêmico Relatório Kynsei, o
"Sexual Behavior in the Human Male", que fazia o mais completo
diagnóstico dos hábitos sexuais do homem norte-americano. Para escândalo de
Sayyd Qutb, entre outras conclusões, Kynsei observou que 69% dos entrevistados
já haviam pago por sexo com prostitutas e que 37% admitiam algum tipo de relação
homossexual.
Por fim, Qutb viu uma nação racista, que discriminava homens
de cor como ele, e chegou a presenciar o espancamento de um negro em praça
pública sem qualquer reação das autoridades. Na época, o professor lançava a
Justiça Social no Islã, obra que o elevou à condição de pensador do Islamismo.
Ao retornar ao Egito, Qutb assumiu a liderança da Irmandade Muçulmana,
organização que combateu com ações radicais a ditadura de Gamal Abdel Nasser,
que derrubara a monarquia egípcia. Recusou diversos convites para integrar o
governo e foi preso e torturado após um fracassado atentado a tiro contra
Nasser, em 1954. Na prisão, escreveu diversas obras doutrinais, que enviava
pouco a pouco da prisão até ser condenado à morte, em 1966. Celebrou a sentença
como o coroamento de sua jihad particular. Prevendo uma convulsão social com
sua morte, o governo de Nasser implorou para que Qutb recorresse da sentença.
Sem sucesso. O principal ideólogo do fundamentalismo islâmico foi morto por
enforcamento em abril daquele ano.
A transição política no Egito tende a ser conturbada. Os
interesses ocidentais dificilmente permitirão liberdade plena aos egípcios na
escolha de seus dirigentes por conta da grande influência que movimentos
radicais ainda têm sobre a sociedade. Uma ascensão da Irmandade Muçulmana ao
poder fará com que os EUA venham a tomar medidas duras contra o Egito. A
exemplo do que ocorreu no Iraque, quando moveu sua impiedosa máquina de guerra
para derrubar o regime de Saddam Husseim, o ditador que ajudou a armar até os
dentes na guerra contra o Irã, os EUA terão à frente o dilema de punir o povo
hoje às ruas para corrigir o incompreensível erro de dar suporte à ditadura
amiga de Mubarak por longos 30 anos.